Aulas Abertas

Ulisses e a revolução do romance

                                                                                                         Ulysses, xilogravura, 2022. Julia Contreiras

“Em James Joyce surpreende e perturba, ao primeiro contato, o formidável poder criador”, escreveu Gilberto Freyre em 11 de dezembro de 1924, no Diário de Pernambuco. Um século depois de sua publicação, Ulisses preserva sua vivacidade e suscita a invenção artística nas diversas formas de arte, pesquisas acadêmicas inovadoras, além de novas traduções e edições em todo o mundo. 

Vitor Alevato do Amaral, professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal Fluminense (UFF) e fundador do grupo de pesquisa Estudos Joycianos no Brasil, comenta por que a extensa narrativa de um dia na vida de um homem comum de Dublin, Leopold Bloom, tornou-se uma das obras literárias mais influentes e revolucionárias dos últimos 100 anos.

Para ele, a variação do ponto de vista narrativo, a mistura de gêneros literários diversos e o acesso ao fluxo de consciência das personagens por meio da técnica do monólogo interior são processos e estruturas literárias inventivas que abriram para os escritores pós-Ulisses novas perspectivas para o gênero narrativo e para a forma romance. Esse desbloqueio promovido por Ulisses verifica-se nas próprias obras subsequentes de Joyce, em particular em Finnegans Wake (1939), que pode ser lido como um poema em prosa e constitui um modelo extremo para a literatura experimental. No Brasil, a obra ressoou por meio dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos.

Em Ulisses, a tradicional estabilidade do narrador desaparece no romance. Sem aviso prévio, o foco narrativo transita da terceira para a primeira pessoa nas passagens de monólogo interior – passando muitas vezes de uma personagem para outra, de modo que a mesma cena seja representada sob ângulos diferentes. “Após Ulisses, o narrador deixa inclusive de ser uma instância essencial da ficção”, explica Vitor. 

Outra novidade do livro é a utilização abrangente de materiais linguísticos e modalidades discursivas diversas. “Há poemas, cartas, trechos que parecem ter saído de uma reportagem de jornal, peças de retórica, há o gênero dramático, o teatro… enfim, Joyce mistura todos os gêneros literários, e mesmo alguns não-literários, em uma só obra.”

A terceira revolução levada a cabo pelo romance reside no acesso direto ao fluxo de consciência das personagens. “Isso é uma coisa que ainda não havia sido feita com a mesma radicalidade com que Joyce faz em Ulisses”, observa Alevato do Amaral.


“Ao reproduzir o pensamento das personagens, a prosa assume uma modalidade que não é propriamente narrativa, pois quando a personagem pensa, ela em geral não está narrando, mas simplesmente pensando. Além disso, cai parte da censura, dos juízos de valor; por isso ficamos sabendo dos desejos inconfessáveis das personagens, em especial das suas fantasias eróticas.


A penetração nos fluxos de consciência intensifica-se ao longo do livro até chegar ao momento máximo de radicalização no episódio final do romance, no célebre monólogo interior de Molly Bloom. “Molly Bloom não diz nada, apenas pensa, e nós temos acesso a esses pensamentos ao longo de um episódio de dezenas de páginas formado apenas por oito longas frases e quase sem pontuação.”

Nas suas grandes estruturas, Ulisses tem como referência explícita a Odisseia de Homero. Assimilando em chave moderna a epopeia antiga, Joyce organiza os principais eixos do romance – a sequência e a divisão dos episódios, a aparição e a significação das personagens, a locação das cenas etc. A tríade Bloom, Stephen e Molly, por exemplo, alude a Ulisses, Telêmaco e Penélope. Não obstante, para Alevato do Amaral, há muitas outras referências fundamentais imbricadas em Ulisses. “Joyce disse o tempo todo que a força estrutural do romance vem da Odisseia, mas cada vez mais os estudiosos vão descobrindo outros pilares. Talvez uma presença mais importante do que Homero seja Shakespeare.”

James Joyce começou a pensar em Ulisses enquanto escrevia seu primeiro livro em prosa, Dublinenses (1904). A ideia inicial era que o livro se chamasse Ulisses em Dublin, para o qual ele escreveria um conto chamado Ulisses. O conto não foi escrito, mas transformou-se em um grande romance, que Joyce começou a compor em 1914, processo que se estendeu por sete anos e em que Joyce reelaborou o texto compulsivamente até o último instante da impressão. “O trabalho de escrita era extenuante porque Joyce tinha muitos problemas de visão, passou por muitas cirurgias. Além disso, ele era um escritor metódico e muito compenetrado. Ele ia e vinha, revisava incessantemente”, conta Alevato do Amaral. A primeira edição de Ulisses, publicada pela Shakespeare and Company em 2 de fevereiro de 1922, saiu no mesmo dia do aniversário de quarenta anos do autor. “Ele era um sujeito místico, dado a crendices. Essas coincidências eram muito importantes para ele.” 

Naquele momento, apesar de já ter publicado Um retrato do artista quando jovem (1916), James Joyce ainda vivia de maneira insegura e instável. “Ele contou com o apoio de algumas pessoas, mas sempre esteve em situação um tanto precária”, explica o pesquisador, que destaca a importância de Harriet Shaw Weaver, principal benfeitora de Joyce. 

Ulisses foi escrito em diversos países. De início em Trieste, na Itália, cidade que Joyce teve de deixar de repente, em decorrência da Primeira Guerra Mundial. “Trieste era parte do Império Austro-Húngaro, ligado à Alemanha, portanto inimiga da França e da Grã-Bretanha, e Joyce era cidadão britânico. A Irlanda ainda era parte do Reino Unido.” A composição de Ulisses prossegue em Zurique, na Suíça, e termina em Paris, na França. “Joyce havia deixado muitas anotações do livro em Trieste, e seu amigo, Italo Svevo, autor de A consciência de Zeno, foi quem levou estes rascunhos para Paris, a fim de que ele terminasse de escrever Ulisses.”

A primeira tradução de Ulisses em língua portuguesa, realizada por Antônio Houaiss, apareceu em 1966. Desde então, Ulisses ganhou novas traduções, e a pesquisa brasileira sobre a obra de Joyce desenvolveu-se amplamente. Segundo Vitor Alevato do Amaral, a consistência e relevância dos estudos joycianos no Brasil se deve a diversos nomes. “Mário de Andrade e Gilberto Freyre são os pioneiros, pois foram os primeiros a citarem Ulisses nos veículos brasileiros. Mas as figuras que mudaram tudo, sem as quais a presença da obra de Joyce no Brasil teria sido diferente, são Antônio Houaiss e os irmãos Campos”. 

Em Ulysses – Edição Especial, Companhia das Letras, 2022, com tradução revisada por Caetano W. Galindo, Vitor Alevato do Amaral reconstitui a trajetória de Ulisses no Brasil.


A música em Ulisses

James Joyce teve uma formação musical sólida. Embora fosse um músico amador, Vitor Alevato do Amaral conta que Joyce tocava piano, violão e cantava muito bem. “A voz dele chamava atenção. Ele estudou canto até quando adulto e durante algum tempo chegou a cogitar a carreira como tenor.” A primeira manifestação de James Joyce na literatura foi no gênero lírico e a música sempre se fez presente em sua produção literária. Seu primeiro livro chama-se Música de Câmara (1907) e seu último, Finnegans Wake (1939), é considerado um tipo de musiscritura. Trechos de Ulisses são musicados e a presença da música encontra-se não apenas no ritmo em que a história é escrita, mas também na vida das personagens. Molly Bloom, por exemplo, é cantora. Ouça City of Wordsuma viagem musical por Ulisses.

“O ápice dessa relação de Ulisses com a música está no episódio As Sereias, um capítulo absolutamente musical. O próprio Joyce afirmou que escreveu As Sereias inspirado em J. S. Bach e que ele teria escrito na estrutura de uma Fuga per canonem, uma fuga de Bach”.


Mapeando Ulisses

Ao artista e escritor Frank Budgen, James Joyce disse esperar que Ulisses “construísse uma imagem de Dublin tão completa que, se a cidade desaparecesse repentinamente da Terra, pudesse ser reconstruída a partir do meu livro”. Cem anos depois, é possível encontrar, por meio de projetos como James Joyce’s Ulysses on Google Maps, as demarcações de todos os lugares por onde Leopold Bloom passou naquele dia de 16 de junho de 1904.

Que tal fazer o percurso por seu navegador imaginando como estava o céu de Dublin?


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